12.05.08 - 15.36h: Um tal de Júlio...

Myanmar, Fátima, Etna, Sichuan, o Rocío, o Diabo...

Inspirado por todos, o que também me passa, nestes dias de insatisfação intrínseca... (tradução livre do espanhol-argentino), em papel ou digital, whatever!


“Como não só escreve como também gosta de passar-se para o outro lado e ler o que escrevem os outros, Lucas por vezes surpreende-se com o difícil que lhe resulta entender algumas coisas. Não é que sejam questões particularmente abstrusas (palavra horrível, pensa Lucas que tende a pesá-las na palma da mão e a familiarizar-se ou a afastá-las consoante a cor, o perfume ou o tacto), mas de repente, há como que um vidro sujo entre ele e o que está a ler, de onde impaciência, releitura forçada, bronca à entrada e, no final, grande vôo da revista ou livro até à parede com subsequente queda e húmido plof.
Quando as leituras terminam assim, Lucas pergunta-se que diabo pôde ocorrer na aparentemente óbvia passagem do comunicante ao comunicado. Perguntar isso custa-lhe muito, porque no seu caso, jamais se põe essa questão e por mais rarefeito que esteja o ar da sua escrita, por mais que algumas coisas possam apenas vir e chegar no final de difíceis transcursos, Lucas nunca deixa de verificar se a vinda é válida e se a passagem se opera sem obstáculos de maior. Pouco lhe importa a situação individual dos leitores, porque crê numa medida misteriosamente multiforme que, na maioria dos casos, cai como um traje de bom corte, e por isso não é necessário ceder terreno nem na vinda nem na ida: entre ele e os outros dar-se-á uma ponte sempre que o escrito nasça de semente e não de enxerto. Nas suas mais delirantes intervenções, há, por sua vez, algo tão simples como o jogo do burro ou a bisca dos três. Não se trata de escrever para os outros senão para si mesmo, mas um mesmo tem que ser também os outros; tão elementar, meu caro Watson, que pela desconfiança, pergunta se não haverá uma demagogia inconsciente nessa corroboração entre remetente, mensagem e destinatário. Lucas olha na palma da sua mão a palavra destinatário, acaricia-lhe a pelagem e devolve-a ao seu limbo incerto; pouco lhe importa que destinatário tem, assim, no instante, escrevendo o que ele lê e lendo o que ele escreve, que se dane.”

Julio Cortázar – Un tal Lucas, 1979

(esta amostra de Terre d'Hermès deixou-me inebriado - só se fôr de vez em quando - ainda bem que as açucenas só florescem uma vez por ano, um cacho por pé...)

7 comentários:

Anónimo disse...

Pragmático, o raio do Lucas!... ;)

Moi disse...

Ele sim, eu às vezes é mais de enxerto (sonhos de papel). Abraço grande, Catatau :D

Anónimo disse...

Grande Lucas! ;)

Paulo disse...

Fui abrir a mensagem da garrafa e há lá muito para ver, de facto. Narcisos gordinhos e tudo. Agora é só escolher.

(Ah! Se as açucenas estivessem sempre a florescer não tinham graça. Já as pessoas sinceras e puras, que elas simbolizam, bem podiam abundar nos jardins. Um abraço.)

Moi disse...

Oh, gente do mar e da terra, que bom ter-vos por cá. Isto começava a cinzentar - palavras como sóis!!!

Arion (já está), O Lucas como alter-ego do Cortázar, faz umas observações bem interessantes... Busca por aí... Abraços e mergulhos em companhia ;)

Paulo, muito mesmo, o pior (ou melhor) é escolher! Flores alvas de folhas escuras, sempre... Um grande abraço, até quinta - BA!

SP disse...

o perfume ou o tacto?

:)

um abraço...

Moi disse...

... todos os sentidos, SP, todos!

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