Afinal, mesmo com grossos espinhos e carpos apodrecidos nos vários pés, continuam a florir violentamente em vermelho, rosa, amarelo e branco. Chegámos a podá-las e apesar de alguns transplantes, os esforços foram insuficientes para quebrar o estado selvagem em que se encontravam há já alguns anos. E isto necessitaria da passagem de várias estações e de sucessivos cuidados para conseguirmos domar a sua bravura.
Assim mesmo, desmatámos bastante...
Paranoia ou distúrbio delirante (delusional disorder): caracterizada por: desconfiança (suspeita permanente e, oculta na sua aparência do contrário); rigidez (indivíduos autoritários que dificilmente toleram que os contrariem); hipertrofia do ego (egocentrismo marcado e uma autofilia que conduz a uma valorização exagerada e reiterada das suas virtudes, êxitos e atitudes acertadas); juízos erróneos passionais (utilização de um sistema aparentemente lógico mas fechado por uma determinação unidireccional afectivizada; é um racionalismo mórbido, uma vez que exclui tudo aquilo que possa ser diferente ou crítico – o que ele denomina “perigoso” – relativamente às suas ideias; competitivismo permanente); fanatismo pela justiça (as normas, a lealdade e a justiça servem de disfarce ao ressentimento e à agressividade); como mecanismos de defesa utilizam a negação (em particular na presença de ideias delirantes em que o indivíduo, cego pela atitude passional, não é capaz de aceitar a realidade) e a projecção (é extraordinariamente típico pois na sua atitude receosa e desconfiada, ao ser incapaz de enfrentar a sua realidade com outra, não pode assumir a situação hostil que tem e projecta-a nos outros, incluindo a sua ira).[1]
E tudo não passou de um engano; uma gigante, colossal mentira que me envolveu os neurónios até à mielina, perpeterada pelo Dr. G, um elegante, sorridente e solitário senhor na casa dos cinquenta que me colocou na sua teia neurótica onde tantos outros passaram e, ou foram engolidos e cuspidos pelo próprio, ou conseguiram libertar-se a tempo mantendo uma clareza de espírito que exige persistência perante tantos contratempos diários e lavagens de hemisférios cerebrais alternadas (como no caso do “cravo e da ferradura”) pelas intenções ambivalentes desta transtornada criatura. Conheci-o há três meses por intermédio de um seu “amigo” (os quais acredito que existam mas não na forma como ele os compreende) que me vendo desempregado e conhecendo as demandas do Sr., achou por bem conciliar as necessidades dos indivíduos. Pareceu-me então sério mas enveredando sempre que possível no excesso ébrio como fuga básica às suas constantes preocupações com o bem-estar das “crianças”. É alemão, comunicamos em inglês e logo acordamos o início de uma actividade pedagógica no seu monte, patrocinado pela associação “Esperança de Nova Vida” (o que chega a ser irónico no final...). Eu entro para uma semana de observação com um amigo da infância e adolescência, com quem descobri os encantos da arte e da noite, que foi uma fonte de inspiração e aprendizagens nesse período (e agora de novo, já pessoas formadas por outras lides da vida!), e que busca rendimentos. Aí trabalham sós, duas jovens raparigas com quatro rapazes de origens minoritárias emigrantes, todos alemães, cujos problemas de delinquência e alguma agressividade só se evidenciam no contacto com o conjunto e na presença de uma excessiva liberdade aí concedida pelo isolamento da propriedade onde vivem. É difícil ter privacidade e ainda mais manter esta comunidade! A um quilómetro fica a aldeia mais próxima, Santa Cruz, onde vive a explicadora de português (e de outras disciplinas para os que frequentam a escola portuguesa – apenas dois de eles em dois sítios diferentes) de todos os rapazes, que mantem um horário vespertino e uma proximidade amistosa de um ex-funcionário (Mr. M.) que vive na mesma espiral viciosa de “complots” que o seu ex-amigo e patrão, o Sr. G, que vive na minha aldeia com dois outros rapazes de raízes sociais idênticas, sendo que um deles também tem as ditas explicações. Um total de seis “crianças”, tem este núcleo. A partir desta apresentação inicia-se uma complexa trama que começou há dez anos com a vinda deste senhor para a dita propriedade com um seu amigo mais velho que a comprou a uma velhinha que aí morreu. De casa de turismo rural a rituais de amor livre, o Monte da Ventosa foi palco de muitas actividades recreativas e de investimento (bungalows no limite, florestamento por coníferas e algumas represas agrícolas), e a partir do momento que o seu sócio abandona este projecto, o Sr. G. contacta com “amigos” seus que estão a iniciar a fundação da “Nova Vida” e decide receber, num momento experimental, um rapaz para reabilitação - segundo testemunhos de Mr. M., o miúdo vivia só com o Sr. G. que apreciava os seus honorários de forma etílica nos cafés das redondezas e muitas vezes o deixava só ou emborrachava-se na sua presença, quando o trazia; o miúdo deu provas de eneurese pela vizinhança quando por duas vezes o “tutor” se esqueceu dele na aldeia e teve de dormir ao abrigo de terceiros. Um ano depois iniciam-se obras de infra-estruturas para receber mais jovens – um salão, cozinha e balneários – que contam com a vinda de trabalhadores alemães através da agência (como todos chamam à associação, que funciona com os Serviços Sociais Juvenis da Alemanha através de outra instituição – o “Prognos”) que no início tem a sorte de encontrar um casal óptimo nestes assuntos, que fica dois anos, mas depois faz a recruta sem nenhuma base na experiência ou currículo (tal como a mim ou ao meu amigo, os pioneiros portugas a entrar aqui, depois da professora e de Mr. M, de ascendência luso-inglesa) e traz estudantes a iniciar estágio orientados pela ausência do Sr. G. ou pelos seu exemplos pedagógicos de “faz o que eu digo (e muitas bobines de palavras), não faças o que eu faço”, ou extremos emocionais de desprezo e chantagem, desrespeitando as regras ditas há dias atrás, sem qualquer interiorização moral ou ética, num regresso pautado pelo esbanjamento ou regalos materiais como um pai na fase absurda da separação. Tudo isto, sempre camuflado nos relatórios elaborados pelas “queridas” trabalhadoras e adulterados pelo próprio numa mostra de que “está tudo bem, sem problemas!”. Afinal, são só os outros que o(s) provocam! E, ao que parece, a partir daí, durante o último ano, o Sr, G foi tentando afastar-se de todo este clima que inconsciente e irresponsavelmente montou (incluindo um suposto caso abafado de assédio sexual) – de aldeia em aldeia, mais e mais quilómetros tornam-no agora distante, mas não na influência dos seus vastos tentáculos que perturbam e tentam controlar os que supostamente aí tentam fazer alguma tarefa educativa básica que não seja a inerte permissividade e constante inconstância deste processo. Desses missionários (todos trazem mágoas ao Sr. G, depois de uma paixão esfusiante que o mesmo sentiu pelo seu trabalho), poucos sobraram para contar histórias, mais histórias do que as que fui ouvindo de todos os lados, tantas que julguei enlouquecer na permanente contradição, no jogo de culpas e empurra-empurra, de inveja e cobiça. Foram dois meses na rotina do transporte efectivo entre o Alentejo e o Algarve, escolas, supermercados, cafés, acordar na madrugada e chegar já noite dentro, nervos passageiros por birras breves, desespero controlado pelo sol ou pelo calor da salamandra, jantares em família e capuccinos instantâneos, capinar gramíneas selvagens, limpar, limpar, limpar, em disputa ou espírito de equipa, um lago por fazer, arte grega com azulejos partidos ou pintura em terracota, os hibiscos que não vingaram e um mausoléu circular tornado barbecue, dois geradores e uma nova bomba de água, as ruínas da Pereirinha e a arquitectura marciana atrás do palheiro de alguém. Muitas horas de verborreia germânica numa realidade que aceitei como minha até perceber que qualquer maior envolvimento seria um grande erro. E viver com um maníaco à perna não fazia parte dos meus planos... Por isso votei-me ao silêncio. Entretanto outros desenvolvimentos se sucederam e uma desertificação abate-se sobre o monte (ou talvez não).
O tresmalhar das folhas no alto dos eucaliptos faz-me pensar se alguém poderá cair do telhado por estar a disparar aos pássaros no lusco-fusco, ou se alguém já estará cansado de estar sozinho, sem música, nem cão, nem comida, na sua casinha de madeira. Alguém poderá entender agora que as extrapolações feitas à verdade lhe causaram dor e sofrimento e que de novo se encontrará entre a disputa dos seus pais adoptados que esperam que volte para tocar num teclado ou que alguém espera que o amor de alguém o venha resgatar de onde quer que esteja, agora bem longe de ali. Muitos dos sonhos já foram desfeitos e a fina réstia de esperança pode agora quebrar ou começar a ser tecida novamente, numa ráfia ou sisal, mais resistentes. E aí pode estar um veleiro ou uma motorizada à porta de uma grande vivenda, mas o que fazia falta eram apenas dois braços onde sempre pudessem voltar.
“God loves his children, yeah!”
in Paranoid Android – OK Computer / RadioHead 1997
[1] J. Vallejo, Introducción a la psicopatología y a la psiquiatría, 1998, 4ª edição.
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